Do racismo científico à exclusão de pessoas com útero em pesquisas: a medicina tem uma história marcada por desigualdades.

Por Equipe Sameca

Você já parou para refletir sobre quais corpos importam? É inegável que fatores como raça, condição social e outras formas de desigualdade influenciam profundamente a forma como as pessoas se inserem em uma sociedade capitalista. Esses elementos determinam quais corpos ficam à margem, quais são considerados importantes e, principalmente, quais corpos são vistos como “normais”.

Essa influência se manifesta tanto de uma forma explícita quanto sutil. Enquanto episódios de violência doméstica e policial contra corpos negros, indígenas, trans e mulheres nos chamam a atenção de maneira evidente, existem também impactos “invisíveis”. Quando pensamos em ciência, muitas vezes a encaramos como uma fonte absoluta da verdade, mas ela também está imersa em uma lógica capitalista, machista e racista. 

Dessa forma, a maneira como os corpos são abordados nas pesquisas científicas – quem é estudado e de que maneira – afeta diversas concepções e gera consequências significativas para essas populações.

Para continuarmos, um breve disclaimer:

Ao longo deste post, quando utilizamos o termo “pessoas com útero”, estamos nos referindo àquelas pessoas que são designadas como mulheres ao nascer. Reconhecemos que essa definição não abrange todas essas pessoas nem se limita exclusivamente a elas, mas adotamos essa terminologia para tornar a discussão mais concisa e abrangente.

Não podemos esquecer o legado do racismo científico, expresso em práticas como a frenologia e a eugenia. Contudo, neste post, nosso foco será a androcentricidade da ciência e suas consequências para corpos de pessoas com útero.

Até 1993, pessoas que gestavam eram, frequentemente, excluídas de pesquisas médicas. Essa exclusão teve consequências claras e dolorosas, como ficou evidente em 1962, quando inúmeras crianças nasceram com malformações devido ao uso de talidomida por gestantes. A medicação, que não havia sido testada adequadamente em corpos gestantes, causou graves danos – problemas que poderiam ter sido evitados se testes, abrangendo diferentes populações, tivessem sido realizados. Embora, a partir de então, outras situações tenham sido apontadas, foi somente em 1993 que foi determinada a inclusão de grupos de pessoas com útero em estudos, contudo essa medida mostrou-se, ainda assim, insuficiente.

Mesmo representando uma parcela significativa da população global, os estudos que consideram essas pessoas – seja de forma exclusiva ou integrada a uma amostra mais ampla – são frequentemente inferiores e inadequados. Além disso, há uma negligência quanto aos problemas específicos enfrentados por essas populações.

Pesquisas sobre menopausa, questões do aparelho reprodutivo e problemas hormonais em pessoas com útero são, frequentemente, desconsideradas. Em muitos casos, sua saúde é subestimada, como demonstrado no estudo que examinou o discurso em torno de pacientes com endometriose, onde a dor e as experiências dessas pacientes foram, muitas vezes, desqualificadas e atribuídas a fatores psicológicos – um exemplo claro da persistência da ideia da “mulher histérica”, que está presente no discurso médico até hoje.

Produtos voltados à saúde de pessoas com útero comumente apresentam falhas, desde a concepção até o desenvolvimento. Absorventes e outros itens de higiene menstrual, por exemplo, já foram encontrados com traços de metais pesados, representando riscos à saúde. Da mesma forma, a maioria dos manequins utilizados no treinamento de massagem cardíaca não inclui seios, deixando profissionais despreparados para atender adequadamente corpos que os possuem.

Além disso, as dosagens de muitos medicamentos ainda são calculadas com base em médias de altura e peso de corpos masculinos, o que pode resultar em efeitos colaterais mais severos, como náuseas, dores de cabeça, depressão, déficits cognitivos, convulsões, alucinações, agitação e anomalias cardíacas quando prescritas para corpos diferentes. Como consequência, pessoas com útero enfrentam reações adversas a medicamentos quase duas vezes mais frequente do que aquelas com corpos masculinos.

Durante décadas, pessoas com útero foram excluídas dos ensaios clínicos de medicamentos, em parte devido a preocupações infundadas de que as flutuações hormonais tornariam os estudos mais complexos. A negligência é tão profunda que, até em estudos com células e animais, os sujeitos são predominantemente masculinos.

Poderíamos passar horas debatendo e apontando os problemas que permeiam a conduta médica e científica, marcada por um viés androcêntrico, que privilegia corpos masculinos, cis, brancos e de origem anglo-saxônica. Se ampliarmos essa análise para além do campo médico e psicológico, encontraremos diversas contradições e práticas questionáveis, especialmente quando não se discute a situação de outras classes minoritárias, como as populações trans, intersexo e racializadas.

Vale lembrar que a ciência também é política. Adotar uma perspectiva decolonial, antirracista e voltada para a classe trabalhadora é, sem dúvida, um ato revolucionário.

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Referências:

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