Da transformação dos pais em porcos à exploração dos trabalhadores por Yubaba: por trás da fantasia, um alerta sobre desumanização, luta de classes e a urgência de priorizar a empatia sobre o lucro.

Por Equipe Sameca

A Viagem de Chihiro (2001) é uma aclamada animação escrita e dirigida por Hayao Miyazaki. O filme conta a história de Chihiro, uma menina de 10 anos, que, ao se mudar com os pais, acaba presa em um misterioso mundo espiritual. Para salvar seus pais, transformados em porcos, ela precisa trabalhar em uma casa de banhos comandada pela bruxa Yubaba.

A animação ficou bem famosa pelos seus elementos fantásticos. É uma animação belíssima e histórica, carregada de simbolismo, além de cativante. Chegando a receber um Oscar de melhor animação, na época.

Mas, e se eu disser que há um forte teor marxista no mundo simbólico e fantástico de A Viagem de Chihiro? Embora essa perspectiva possa parecer absurda à primeira vista, o próprio Hayao Miyazaki não só tem uma conexão com o marxismo, como também a sua obra está impregnada de críticas ao capitalismo, utilizando o materialismo histórico-dialético como base para muitos de seus elementos narrativos.

Importante contextualizar o autor na sua obra. Apesar de, hoje, Miyazaki não se considerar mais um marxista, durante muitos anos ele se posicionou dessa maneira, inclusive chegou a liderar manifestações de animadores em uma disputa sindical e, em 1964, tornou-se secretário-chefe do sindicato. Então, mesmo que hoje ele não se veja mais dessa maneira, suas posições o colocam como um crítico ao capitalismo.

Durante A Viagem de Chihiro, esses elementos críticos aparecem de forma mais ou menos explícita. Como, por exemplo, a transformação dos pais de Chihiro em porcos após um consumo desenfreado; a ameaça de perder sua humanidade caso não trabalhe e a perda de seu nome ao conseguir um emprego são simbolismos que dialogam diretamente com o consumismo, a desumanização das forças não produtivas e a alienação do trabalho, respectivamente.

Vemos também constantes lutas de classe. Yubaba, que representa a burguesia, detentora dos meios de produção, que, no caso, seria a própria casa de banhos, vivendo em um aposento luxuoso, enquanto seus trabalhadores são alojados em dormitórios coletivos dentro do próprio ambiente de trabalho. Os funcionários dependem dela para sobreviver enquanto têm sua força de trabalho superexplorada ao ver que todos os lucros da casa de banhos permanecem nas mãos dela.

Além disso, o filme apresenta nuances da hierarquia trabalhista, como personagens em posições menos precarizadas que se enxergam como parte da pequena burguesia, mesmo sem realmente pertencer a essa classe. Esses trabalhadores acabam atuando como traidores de classe, prejudicando seus camaradas em vez de se solidarizar com eles, mesmo que sejam igualmente explorados.

O próprio Haku, que tem uma posição superior dentro da casa de banhos, também está alienado. Yubaba roubou seu nome e ele sequer se lembra de quem realmente é. Isso demonstra que, mesmo aqueles que possuem alguma autoridade dentro do sistema capitalista, ainda estão sujeitos às suas regras.

Outro elemento simbólico importante a ser explorado é o da figura misteriosa do Sem-Rosto. O espírito é um símbolo do consumo desenfreado, da comercialização de todos os aspectos da vida e da alienação . No início, ele é passivo, mas ao perceber que pode trocar fichas de banho ou ouro por atenção e outras coisas, passa a consumir tudo o que vê e a tentar comprar tudo que pode, até o que não é comercializável, como as relações humanas.

Ele tenta preencher seu vazio existencial devorando comida, dinheiro e, até mesmo, trabalhadores. Isso vai representar o modo como, no capitalismo, as pessoas tentam preencher a falta de significado em suas vidas ou, até mesmo, do senso de si com o consumo.

Durante o filme, também vemos, de diversas maneiras, a exploração da natureza pelo capitalismo. Essa é uma tópica que Miyazaki traz em diversos de seus filmes como Princesa Mononoke, Totoro, Nausicaa e outros. Essa crítica pode ser colocada tanto no espírito do rio, que chega a casa de banhos e está coberto de lixo parecendo quase irreconhecível, como também no próprio Haku, que tem sua força de trabalho explorada por uma burguesia, mesmo sendo um espírito do rio.

No final do filme, Haku decide abandonar seu cargo como aprendiz de Yubaba e Chihiro recupera seu nome e seus pais. Mas a estrutura da casa de banhos permanece inalterada. Não há uma revolução dos trabalhadores, há apenas um pequeno grupo que consegue escapar do sistema. Isso reflete a visão de Miyazaki: ele não propõe uma revolução socialista, mas deseja um mundo onde o amor, a empatia e a natureza sejam priorizados sobre o consumismo e a exploração. No entanto, como a própria análise marxista sugere: enquanto os meios de produção permanecerem nas mãos da burguesia, a alienação e a exploração continuarão existindo.

A Viagem de Chihiro pode não ser um chamado à revolução, mas traz diversos elementos importantes a serem analisados de uma maneira materialista mesmo sob uma roupagem simbólica.

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Referências:

A Marxist Analysis of Spirited Away, video de @revolutionaryth0t, disponível em

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